19.1.12

OPERETA D' ALMA


Bem vindos ao espaço onde chove e faz frio,
onde troveja na alma e se sentem os poros do coração.
Bem vindos ao pedestal de nuvens que em fios de seda aguentam a estrutura!
Bem vindos ao festim grotesco e vazio, indesejado e necessário.
Bem vindos onde a chuva seca na pele e onde o mar encolhe com medo do frio da areia.

Bem vindos ao sanatório da alma a campo aberto, onde tudo é permitido.
Bem vindos amigos de ontem e de hoje, amigos de amanhã e depois

Bem vindos todos, todos,
é só entrar sem bilhete nem programa com espectáculo garantido
É a fera a contorcer-se entre grades e chicotes
é a pomba a jorrar sangue entre risos de animais.
Entrai, entrai todos e vede sem pagar.

Vede aqui  a manhã adulterada e o sol esfaqueado,
a noite corrompida e o dia eternizado.
Vede fusões de alma e entregas ao vento,
como quem se esvai no fumo delicado.
Vede e comei e dançai e aplaudi se quiserdes, mesmo que não percebeis nada

Vede morrer-me devagar a densidade da alma
 enquanto danço e canto e choro e sorrio
e oferto as mãos a quem não conheço

Vede ser-me humano e carne e coração e alma
vede ser-me sangue e dor e nada
vede ser-me vibrante e colossal quando na realidade me morro
Ser que se vive e se consome
que se anula e compromete
que indulgencia a penitência e arrisca de novo o caminho da tempestade

Vede quão deserto se faz em tudo
como incêndio descontrolado em paisagem soberana

Dançai e bebei e comei
não vos inquieteis em pensamentos mais profundos pois o viver é agora
Vede como as asas mirram e os anjos as compõem
vede como se afastam sujos de dor e piedade.
Vede um novo espectáculo de amor

Ouvi o gemido de dor em mãos abertas
Vede as lágrimas  nos olhos sorridentes

Ficai, amigos, ficai e fazei aqui o vosso próprio estertor
catarse ampliada e colectiva das vossas próprias frustrações.
Senti a pele que se desfaz e os pruridos que vos infectam

Ficai, amigos, e recebei de graça esta noite em dia eternizado.
Ficai, amigos, para poderdes voltar ao manto atalhado de vossas vidas
quando vos perguntarem que andasteis a fazer

Ficai e sede tudo o que não sedes
fazei tudo o que não podeis.
Deixai cair a cortina que embacia o brilho do que quereis ser.

Ficai e sede este instante que nunca vos haveis permitido ser
Agradecei-vos da orgia d'alma até agora arrumada e acantonada em vértices de geometria
mesmo quando não há matemática na vida.

Dançai e sede,
mas sobretudo haveis de sentir tudo o que conhecíeis e o que não sabíeis existir.
Derramai-vos totais em todas as facetas que vos existem.
Apreciai-vos também na fealdade e na contorção do belo
Haveis de sentir-vos por inteiro
lado outro da moeda estilizada

Ficai e dançai e aproveitai a festa.
A lua fez-se grande em mim e já meus olhos se ausentaram.

Acoita-se em minha alma a noite
e receosas as sombras cobrem-me o ser.
Levanto meus braços em gestos sofridos
e canto neste silêncio de sangue e amor

Faz-se tarde em mim e já não me vedes nessa dança
qual par desencontrado em corações unidos

Já a voz se extinguiu, mas o canto permanece
E do meio das vossas danças e risos,
dos vossos egos e abraços
dos vossos vazios e contrasensos,
estendo-me inerme e diluído
em gotas lentas e brilhantes
em cores fortes e macias
num veludo principesco de morte e agonia
de mãos abertas e gastas
sem forças nem vontade
num coração de amor
que se gastou sempre assim
em quilates de miséria

como um som final de piano
uma brisa que passou no rosto
um pálido raio de sol ao entardecer
um abraço sentido de paz
uma lágrima que não haveis percebido
um abraço que se fez sorriso...

em lancinantes silêncios
em espasmos de amor
como uma jugular ferida da alma 
esvaindo-se sem deixar rasto
como se fora uma peça num público triunfante
que aplaude sem saber o que vê

E de amor. de sonho e vontade
fecham-se os olhos macerados em suspiros indeléveis...










Na catedral da doação
tudo isto vos mostrei
como um filme holográfico enquanto dormíeis
...E Deus nao respondeu ...
porque na morte de um pássaro e no silêncio de uma alma
no colo de uma mãe e na dor que a desfaz
mora sempre a liberdade de um novo amanhecer...